Carta Aberta: Política de reconhecimento facial da PCR ameaça direitos de todos os cidadãos e cidadãs
Ao Exmo. Sr. Prefeito da Cidade do Recife, João Campos;
Ao Ilmo. Sr. Secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência Tecnologia e Inovação da Cidade do Recife, Rafael Dubeux;
Ao Ilmo. Sr. Secretário-Executivo de Parcerias Estratégicas da Cidade do Recife, Thiago Ribeiro.
Diante dos recentes anúncios da Prefeitura da Cidade do Recife (PCR) em implementar 108 “relógios” inteligentes embarcados, entre outros recursos, com câmeras de reconhecimento facial para fins de segurança pública em diversas regiões da cidade, as organizações e indivíduos abaixo subscritos, envolvidos diretamente com a defesa de direitos fundamentais, como a privacidade e a liberdade de expressão, direito à cidade e a democratização da comunicação, pedem para que o poder público local abandone a referida política.
Em outubro de 2021, foi noticiada publicamente a intenção da gestão municipal em realizar parceria público-privada para contratação de empresa que irá se responsabilizar pela instalação e manutenção de mobiliário urbano que irá contar com relógios digitais, sensores de temperatura, Wi-Fi e câmeras de reconhecimento facial. Deste então, foi aberta consulta pública para contribuição da sociedade civil e agendada audiência pública para apresentação do projeto. Em que pese a necessidade de promover a modernização tecnológica da cidade, a iniciativa não avalia suficientemente o amplo debate global em curso sobre os riscos aos direitos dos cidadãos derivados do emprego da tecnologia em questão.
Câmeras de reconhecimento facial funcionam com base na coleta de dados biométricos faciais dos indivíduos, nesse caso, o mapeamento compulsório dos rostos dos cidadãos e cidadãs. A partir de tecnologia de inteligência artificial que as acompanha, realizam a checagem das imagens faciais capturadas com bases de dados pré-existentes, ou mesmo contribuem para a construção dessas bases de dados a partir da identificação em massa das pessoas. Estamos diante, portanto, de um mecanismo de vigilância e identificação massiva dos recifenses em espaço público.
Além da política municipal falhar ao não apontar as bases legais para o tratamento dos referidos dados, também não aponta como irá mitigar eventuais danos aos titulares dos dados, as diretrizes de segurança da informação que deverão ser empregadas ou para quais casos de segurança pública o recurso será utilizado na prática. O cenário impõe aos cidadãos e cidadãs um aparato de monitoramento contínuo que, como demonstram articulações nacionais e internacionais, viola a privacidade e inibe indivíduos e coletividades em sua experiência com a cidade, terminando por cercear direitos políticos como a liberdade de expressão, opinião, reunião e manifestação. Como consequência direta dos riscos e do debate público, grandes nomes da indústria tecnológica, como a Microsoft, Amazon e IBM, já abandonaram o fornecimento de reconhecimento facial para forças de segurança pública.
Adicionalmente, tais tecnologias de reconhecimento facial enfrentam atualmente diversas críticas do ponto de vista ético. Isso porque são dotadas de um profundo viés racista, identificando com menor precisão pessoas negras e pardas em comparação com pessoas brancas. Esse caráter aprofunda o racismo já amplamente vivenciado no país ao gerar “falsos positivos” que resultam em detenções de pessoas inocentes, como vem acontecendo em diferentes localidades. Diversas pesquisas de instituições acadêmicas e governamentais confirmam as consideráveis taxas de imprecisão das mais sofisticadas tecnologias de reconhecimento facial. Logo, sua tendência racista é um consenso, problema incontornável do ponto de vista tecnológico, político e social.
O ente municipal também está diante considerável insegurança jurídica caso a tecnologia seja adotada. Como também observado em cidades como São Paulo e Fortaleza, o aumento de ações judiciais contra o uso da tecnologia vem levando a suspensão de editais de licitação para sua compra. Assim, o Poder Judiciário vem reconhecendo o caráter controverso da tecnologia e requerendo maiores esclarecimentos a respeito dos sistemas adotados. Como consequência, indenizações e multas serão parte da nova realidade, uma vez que casos de vazamento de dados ou reparação a indivíduos que foram erroneamente identificados em casos de falso positivos serão recorrentes.
Além de tudo, o modelo de terceirização da operação e gestão das câmeras sugere uma série de novos desafios e perguntas que, aparentemente, não foram endereçadas até o momento pelo poder público: quais as exigências feitas aos agentes privados no que diz respeito a padrões mínimos de proteção de dados dos recifenses que deverão ser adotados? A coleta e o tratamento de dados biométricos serão realizados somente pelo poder público ou também pela empresa contratada? Quais as diretrizes de transparência sobre o uso desses dados? Afinal, agentes econômicos costumam tratar dados pessoais com fins lucrativos e dificultam o acesso público a essas informações, abrindo margem para a monetização de dados pessoais sensíveis dos cidadãos com outras entidades públicas e privadas.
Em decorrência disso, iniciativas em diversas regiões do mundo apontam para um movimento pelo banimento do uso de reconhecimento facial, sobretudo para fins de segurança pública. Na Europa, a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados alerta publicamente para a necessidade de seu banimento; nos Estados Unidos, políticas municipais de grandes cidades como São Francisco, Boston, Portland e dezenas de outras já instituíram efetivamente o banimento da tecnologia; na Câmara Municipal do Rio de Janeiro tramita Projeto de Lei que também pleiteia pelo seu banimento, além de articulações nacionais e internacionais da sociedade civil organizada que promovem campanhas no mesmo sentido. A Alta Comissária para Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Michelle Bachelet, recomendou a moratória dos sistemas de inteligência artificial que coloquem direitos humanos em risco, aqui incluso o reconhecimento facial. A Cidade do Recife não pode ignorar o debate público que vem sendo construído democraticamente há anos.
Por fim, ressalte-se o insuficiente envolvimento dos variados setores da sociedade ouvidos, até agora, no momento de estruturação inicial da referida política pública. Apesar do tema ser de evidente interesse público – uma vez que trata-se de tecnologia de alto impacto aos direitos individuais e da coletividade – entidades acadêmicas e representações da sociedade civil estiveram à margem da construção da iniciativa. Além disso, ainda que esteja prevista audiência pública para tratar do tema, seu formato e composição não está claro, sugerindo que será uma sessão meramente expositiva e de baixa representatividade dos variados setores de interesse.
O poder público local se coloca diante de duas alternativas: poderá garantir o pleno respeito dos direitos dos cidadãos, como sua privacidade e liberdade de expressão, ou instituir um expansivo aparato racista de controle e vigilância sobre os recifenses, na contramão dos direitos humanos. Por essas razões, as entidades aqui subscritas pedem para que a Prefeitura da Cidade do Recife abandone a proposta de instalar 108 câmeras de reconhecimento facial na cidade.
Recife, 18 de novembro de 2021.
Organizações:
AqualtuneLab
Articulação Negra de Pernambuco
ARTIGO 19 Brasil e América do Sul
Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC
Centro Popular de Direitos Humanos – CPDH
Coalizão Direitos na Rede
Comissão de Advocacia Popular da OAB/PE
Extensão Além das Grades – UFPE
Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares – GAJOP
Grupo de Trabalho pelo Desencarceramento de Pernambuco
Instituto Beta: Internet & Democracia – IBIDEM
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC
Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife – IP.rec
Instituto Educadigital
Instituto de Referência em Internet e Sociedade – IRIS
Internet Society – Capítulo Brasil
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Laboratório de Políticas Públicas e Internet – LAPIN
Luiz Carlos Pinto da Costa Júnior – Sociólogo e Coordenador do Mestrado em Indústrias Criativas da UNICAP
Mestrado em Indústrias Criativas da Universidade Católica de Pernambuco
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Segurança – NEPS
Observatório da Ética Jornalística – objETHOS
PlacaMãe.Org_
Rede Latino-Americana de Estudos de Vigilância, Tecnologia e Sociedade – LAVITS
Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas – RENFA
Telas – Laboratório de Pesquisa em Economia, Tecnologia e Políticas da Comunicação – UFC