Venda da biometria da íris e os impactos nos Direitos Digitais no Brasil

A venda de íris no Brasil levanta preocupações significativas sobre privacidade e direitos digitais, destacando a necessidade de regulamentação para proteger os dados biométricos dos cidadãos.

O World ID, um projeto que recompensa pessoas com pagamentos em criptomoedas em troca de uma foto da íris, ganhou grande visibilidade no TikTok. Esse programa foi lançado no Brasil em novembro de 2024 pela empresa Tools for Humanity, que pertence a Sam Altman, CEO da OpenAI, e tem como objetivo estabelecer uma “Identidade Global” única e segura, resistente a fraudes digitais.

Desenvolvido pela World Foundation, o projeto começou a chamar atenção nas redes sociais à medida que mais brasileiros descobriram os locais de coleta equipados com as Orbes, dispositivos especiais para captura da íris. A curiosidade em torno da iniciativa e as filas nos pontos de cadastro cresceram rapidamente, impulsionadas pela oportunidade de receber na criptomoeda Worldcoins (WLD), que pode variar entre R$ 700,00 e R$ 900,00, como incentivo pela participação voluntária. Então, qual é o problema de vender um dado seu?

Violação da Autonomia e Consentimento Livre[1] 

A oferta de compensação financeira por dados biométricos sensíveis coloca em xeque o consentimento livre e informado, exigido pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). A Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) argumenta que a recompensa monetária pode induzir pessoas em vulnerabilidade socioeconômica a cederem dados íntimos sem compreender os riscos, comprometendo sua autonomia.

Em um país com altos índices de desigualdade, essa dinâmica reforça a exploração de grupos já marginalizados pelo sistema penal, como jovens negros e periféricos. Interessante constatar que tecnologias como essa são vastamente popularizadas em países subdesenvolvidos e emergentes, onde existe uma parte da população em vulnerabilidade econômica e tem seus direitos violados cotidianamente, logo, a venda de um dado pessoal sensível não é o maior de seus problemas. No entanto, por não terem noção do como isso pode impactar suas vidas no futuro e o que significa ter seu dado biométrico da íris coletado e com quem esse dado pode ser compartilhado, essas pessoas não se importam de vendê-los. 

Apesar de a LGPD aprovar a coleta de dados com o consentimento, o projeto da World ID consegue convencer a população através da recompensa financeira. “A íris, como qualquer outro dado biométrico, precisa de consentimento da pessoa para que sejam utilizados. Isso requer uma manifestação livre, inequívoca e informada. Porém, é questionável este consentimento diante do fato de haver compensação financeira para isso. Em diversos países, tais como Espanha, Portugal, Coreia do Sul e Argentina, este serviço já foi proibido devido à falta de transparência sobre o tratamento e a finalidade dos dados coletados, incluindo a impossibilidade dos usuários revogarem o consentimento após o registro (algo que a LGPD e legislações similares de outros países garantem)”.[2]

Riscos à Privacidade e Segurança

A íris é um dado biométrico único e irrevogável. Se vazada ou mal armazenada, pode ser usada para fraudes, vigilância massiva ou até perseguição política. A falta de transparência sobre o armazenamento e uso futuro desses dados pela Tools for Humanity aumenta o risco de violações, especialmente em um cenário de falta de fiscalização eficaz.

Apesar de informarem que as imagens são transformadas em códigos criptografados, excluídas, não há uma garantia de que esses dados não possam ser vazados ou compartilhados com outras empresas entre o processo de coleta e descarte. Ademais, não é possível ter uma certeza de que a empresa excluirá os seus dados e mesmo que isso ocorra, ela permanecerá com um identificador daquele dado biométrico da íris de cada indivíduo.

Dessa forma, para populações vulnerabilizadas, as quais já sofrem monitoramento desproporcionalmente pelo Estado, isso agrava a exposição a sistemas de controle penal e social . Tendo em vista que, em um país como o Brasil, onde sua população é diversa em questão de racialidade, a mercantilização de dados biométricos, como o da íris, por exemplo, pode aumentar práticas discriminatórias. Mais de 50% da população brasileira é negra (pretos e pardos), além disso, atualmente, no Brasil, 74,2% dos jovens presos em unidades socioeducativas são negros, conforme dados de 2024. Esse perfil é predominante entre adolescentes de até 17 anos, sendo que 95,5% são do gênero masculino[3]. Ou seja, a venda de dados biométricos pode influenciar na vida de pessoas que já são vulneráveis apenas por causa da cor de sua pele e agora serão mais vulneráveis ainda, uma vez que não temos informações adequadas do que serão feitos com esses dados.

Portanto, as desigualdades estruturais serão ampliadas, porque a coleta de íris feita pela empresa Tools For Humanity concentra-se em regiões periféricas, onde a vulnerabilidade econômica é maior, assim, esta é uma prática que reproduz a lógica de um sistema penal seletivo, a qual criminaliza pessoas negras, em estado de vulnerabilidade econômica e social,  e ao monetizar a necessidade financeira desses grupos em troca de dados irreversíveis, mitiga direitos e garantias fundamentais sem que elas sequer contestem ou se defendam de um perigo eminente.

Na matéria do blog Techtudo informou que: “a repercussão da “venda de íris” em redes como o TikTok sugere que a maioria dos voluntários estava realizando o cadastro exclusivamente pela compensação financeira. Um forte indício que corrobora para confirmar este cenário é o fato da maioria dos pontos de cadastro estarem localizados em regiões periféricas de São Paulo, despertando o interesse majoritário de usuários financeiramente vulneráveis e, quase sempre, sem compreensão do projeto, bem como de seus objetivos e implicações em potencial.”[4]

Fragilização de Direitos Digitais, Constitucionais e Penais

A LGPD classifica dados biométricos como sensíveis, exigindo tratamento rigoroso, além disso no art 5º, LXIII da CRFB/88[5] e no art. 155 do Código de Processo Penal Brasileiro[6], ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere). Pessoas em vulnerabilidade sociais, principalmente a econômica, são o público alvo preferido dessa empresa e é dever do estado a manutenção de seus direitos fundamentais, como os listados anteriormente. A venda da biometria da íris, por ser um dado pessoal sensível, e por ser algo único do ser humano, ou seja, que não é possível ser copiado, pode mitigar direitos e garantias penais, processuais e constitucionais.  A Tools for Humanity não esclarece como garantirá a segurança das informações ou o direito de exclusão, o que viola princípios legais. Em um sistema que já falha em proteger direitos básicos, a falta de controle sobre dados biométricos reforça a exclusão digital de quem não tem acesso a informações sobre seus direitos.

Apesar de a Constituição da República Federativa Brasil de 1988 e o Código Penal Brasileiro de terem adotado a teoria do domínio do fato[7], ou seja, o réu se defenderá dos fatos que forem imputados. Contudo, não é bem assim que acontece na vida fora dos livros de doutrinas de direito constitucional e direito penal. Pessoas negras, e em vulnerabilidade social e econômica em grande maioria respondem não pelo fato imputado, mas por quem são e por suas personalidades, antecedentes. O art. 59 do Código Penal[8] traz elementos de um direito penal do autor[9].

Logo, levando em consideração que são essas pessoas as mais presas, que passam por mais mazelas sociais, que sofrem violência policial cotidianamente, essas são as mesmas pessoas, que estão vendendo a biometria da íris R$ 700,00 a R$ 900,00, o que para muitas famílias isso define a vida naquele mês.  Por sua vez, isso poderá no futuro pode trazer diversos malefícios, dos quais nem podemos mensurar.

 

 

Impacto na Cidadania e Identidade

A biometria da íris é vendida como uma “prova de humanidade” em um mundo dominado por IA, mas isso cria uma divisão entre quem pode “comprovar” sua identidade e quem não tem acesso a esses sistemas. Em um país com histórico de exclusão documental (como comunidades indígenas e quilombolas), a monetização da identidade biométrica pode reforçar hierarquias sociais, replicando a seletividade do sistema penal .

Superioridade da biometria ocular em relação à facial e de voz, a biometria ocular se destaca pela precisão e segurança em comparação com outras formas de identificação biométrica, como o reconhecimento facial e de voz. O reconhecimento facial, por exemplo, pode ser facilmente enganado por fotos ou vídeos manipulados, e a biometria de voz é vulnerável a gravações ou imitações. Já os padrões da íris são extremamente difíceis de replicar, o que torna a biometria ocular um dos métodos mais seguros de autenticação digital. Em um contexto no qual tecnologias como deepfakes — vídeos ou imagens manipuladas por inteligência artificial para parecerem reais — se tornam cada vez mais prevalentes, a biometria ocular oferece uma camada robusta de segurança.

A dificuldade de falsificação dos padrões íris é uma barreira eficaz contra fraudes digitais. Além disso, a identificação por íris pode ser integrada em dispositivos móveis, proporcionando um método de autenticação mais seguro para transações financeiras e acesso a dados sensíveis, o que é essencial em um cenário de crescente digitalização e vulnerabilidade a fraudes.[10]

Risco de Controle Social

O risco de controle social a partir da junção de diferentes dados biométricos, como a biometria facial, a biometria digital e agora a biometria da íris, podem ser um conjunto extremamente perigoso para a população num geral, e mais ainda para populações vulnerabilizadas, como pessoas negras.

Embora a Worldcoin afirme que os dados são convertidos em códigos criptografados, existe um questionamento latente quanto à possibilidade de reidentificação, especialmente se houver integração com bases governamentais (como registros policiais ou bancos de dados públicos). Além disso, se for associada a outros dados (como localização, atividades online ou participação em eventos), governos ou grupos de poder poderiam mapear e monitorar indivíduos vinculados a movimentos específicos.

No Brasil, a falta de transparência sobre o armazenamento e o uso futuro dos dados biométricos coletados pela Tools for Humanity amplia o risco de vazamentos ou acesso não autorizado por autoridades. Apesar das garantias de anonimização e minimização de dados, o uso de biometria da íris traz consigo o risco de rastreamento ou correlação com outras bases de dados. O potencial de exploração dos dados biométricos em mercados secundários ou em contextos de vigilância massiva é uma preocupação legítima, especialmente em um cenário de regulação ainda em construção.[11]

[1] Venda da íris do olho: conheça os perigos por trás dessa prática | Idec

[2] Venda de íris: projeto deidentidade globalgera polêmica nas redes sociais|Universidade Federal Fluminense

[3] 74% dos menores de idade presos são negrosDiário Causa Operária

[4] Venda de íris proibida no Brasil: e agora? O que você precisa saber sobre

[5] Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

[6] Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

[7] A teoria do domínio do fato e a sua extensão punitiva

[8] Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (Vide ADPF 1107)

[9] Direito penal do fato ou do autor? A insignificância e a reincidência

[10] Coleta de dados biométricos oculares no Brasil: implicações jurídicas, ética e riscos à privacidade

[11] Desafios da biometria de íris na era digital: Segurança, privacidade e conformidade legal

Arthur Barbosa é advogado e codiretor do Aqualtune Lab.

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