Quando a saúde vira dado: os riscos da dataficação e da lógica neoliberal no SUS

Nos últimos anos, o Brasil tem apostado na digitalização como caminho para aprimorar o Sistema Único de Saúde (SUS). A criação de plataformas como a Rede Nacional de Dados em […]

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Nos últimos anos, o Brasil tem apostado na digitalização como caminho para aprimorar o Sistema Único de Saúde (SUS). A criação de plataformas como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) e a implementação da Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020–2028, por exemplo, são políticas que buscam integrar informações e modernizar o atendimento.

A digitalização dos serviços de saúde promete modernização e eficiência, mas o avanço da dataficação revela outro lado desse processo.

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Assim, o que parece um avanço tecnológico pode esconder uma transformação mais profunda — e preocupante. O pesquisador Sérgio Amadeu da Silveira, em seu texto “A dataficação da saúde e o neoliberalismo”, analisa como a digitalização da saúde pública tem incorporado princípios neoliberais que ameaçam a universalidade do SUS e colocam em risco a proteção de dados pessoais dos cidadãos.

Da digitalização à dataficação: quando o cuidado se transforma em informação

Silveira chama atenção para a diferença entre digitalizar e dataficar.

  • Digitalizar é transformar processos e registros em formato digital.
  • Dataficar, por outro lado, é converter ações, interações e comportamentos em dados quantificáveis, rastreáveis e monetizáveis. Esse processo vai muito além de informatizar o sistema.

Essa lógica da dataficação não nasce no setor público, mas no mercado. Isto é, é a base das grandes plataformas tecnológicas e do modelo econômico que vê os dados como “o novo petróleo”. Quando aplicada à saúde, então, essa lógica cria um cenário em que dados de pacientes passam a ter valor de mercado, abrindo espaço para a entrada e o lucro de empresas privadas.

Neoliberalismo e saúde: a lógica da concorrência no coração do SUS

O autor mostra como a Estratégia de Saúde Digital (ESD 2020–2028) reproduz princípios da chamada “saúde baseada em valor”, conceito importado da medicina privada norte-americana e da doutrina neoliberal de Michael Porter.

Essa visão entende o paciente como cliente e o cuidado como um produto a ser otimizado.
Sob o discurso de eficiência e qualidade, a proposta transfere a lógica da concorrência e da redução de custos para o campo da saúde pública — priorizando métricas, performance e resultados mensuráveis, e não o direito universal ao cuidado.

Na prática, isso significa que a saúde deixa de ser um direito e passa a ser uma mercadoria, sujeita à lógica de mercado. O Estado, por sua vez, assume o papel de comprador de tecnologias, e não mais de provedor de políticas públicas.

Defender o SUS implica reorganizar as políticas digitais, proteger os dados dos segmentos mais fragilizados e pauperizados da população, utilizar tecnologias de inteligência de máquina para aumentar direitos, reduzir e eliminar discriminações raciais e sociais operadas por sistemas algorítmicos. É preciso pensar como criar, desenvolver e disseminar tecnologias para fortalecer a saúde pública universal.

SILVEIRA, Sérgio Amadeu. A dataficação da saúde e o neoliberalismo. In: DE CARVALHO, Mariana; BANDEIRA, Olívia; MURTINHO, Rodrigo (org). Proteção de dados pessoais nos serviços de saúde digital. Rio de Janeiro: Edições Livres, 2025.

Dados sensíveis, desigualdade e o risco da exclusão algorítmica

Um dos pontos mais críticos levantados por Silveira é o uso dos dados de saúde como matéria-prima para sistemas de inteligência artificial. Essas tecnologias, embora apresentadas como soluções para eficiência, podem reproduzir desigualdades e discriminações.

O exemplo citado pela pesquisadora Virginia Eubanks, nos Estados Unidos, mostra como a automação e os algoritmos podem excluir os mais pobres dos serviços públicos.
No Brasil, um modelo semelhante aplicado ao SUS, sem debate público e sem controle democrático, pode resultar em vigilância, privatização de informações e desmonte silencioso da política de saúde universal.

A quem serve a digitalização da saúde?

A ausência de governança clara e de protocolos rigorosos ameaça não apenas a privacidade individual. Ameaça também a soberania sobre os dados públicos de saúde, que passam a ser compartilhados com empresas privadas e consultorias tecnológicas — muitas delas estrangeiras.

Assista: Clarissa França aborda o impacto do racismo na Saúde no Webnário “A interseccionalidade e o racismo na saúde: as tecnologias e a produção de iniquidades”.

O debate no GT Saúde Digital: repensar o papel dos dados na saúde

O texto de Sérgio Amadeu integra o livro Proteção de dados pessoais nos serviços de saúde digital. Publicado em 2025, e foi um dos temas do Ciclo de Leituras do GT Saúde Digital, iniciativa do Aqualtune Lab.

O grupo reúne pesquisadores de diferentes áreas para discutir como as tecnologias de informação, os algoritmos e as políticas de dados estão redesenhando o cuidado e a gestão em saúde.

Mais do que modernizar o SUS, é preciso reconhecer os riscos de sua dataficação e propor caminhos que coloquem os direitos humanos, a privacidade e a justiça social no centro da transformação digital.

Leia mais: Aqualtune Lab inicia novo ciclo de leituras sobre Proteção de Dados na Saúde Digital

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